Sem aparente espectacularidade, este trecho de Rentes de Carvalho, retirado de La Coca, ficou gravado na minha memória:
«Para mim 1963 tinha sido um ano mau. O princípio de 1964 mostrava-se ainda pior, o que por uns meses me levou a trocar Amsterdam por Paris. [...]
Em circunstâncias semelhantes, a vida quase sempre se encarrega de dar às situações um toque de absurdo. Assim me acontecia ser convidado com frequência para festividades em que a abastança dos presentes era tão natural que não ocorreria a ninguém que andasse por ali um depenado. [...]
Essas discrepâncias do meu viver devia-as em parte a Madame, que nessa altura já regressara a Paris e vivia então num maravilhoso apartamento do número 7 da Rue des Grands Augustins. Picasso, para ela também como para o lorde, un très cher ami, era o vizinho de cima e eu, com a admiração que o artista me merecia, quando cruzava com ele na escada ou na cour, fazia-lhe respeitosamente a vénia.
Até ao dia em que o acaso quis que o mestre viesse a sair quando Madame e eu íamos a entrar. Beijos dos dois - curiosa cena, aquela mulher muito alta a beijar Picasso - apresentação. Um aceno e um olá do mestre, em seguida uma afirmação críptica da minha amiga: José c'est le jeune homme dont je vous ai parlé. Corei, confuso por não saber do que se tratava, e Picasso rindo da minha confusão, agarrou-me familiarmente pelo braço:
- Tudo acaba por se arranjar, meu rapaz, o principal é saber usar la coca.
Por um instante petrifiquei, julgando que o génio da pintura tivesse perdido o juízo e me recomendasse ali sem rebuço o vício da cocaína. Mas no momento seguinte já ele apontava para a minha cabeça:
- La coca, hombre, la cabeza, la tête! Só se precisa dessa. O resto... - e com um floreado Au revoir! saiu para a rua.»
Monday, April 23, 2012
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