Thursday, August 30, 2018

Cenas da vida do outro lado #1

Do mundo. Literalmente.

MR: "Tia Sara, porque moras sozinha nessa casinha?"

Tia Sara: "Porque a Tia Sara não tem namorado, Maria."

MR: "Mas porquê?"

Tia Sara: "Porque não consigo arranjar um, Maria."

MR: "Precisas de um menino!"

Tia Sara: "Sim, mas não há, Maria."

MR: "Mas tens de tentar! Tenho a certeza que há um menino que gosta de ti! Tens de usar roupas bonitas!"

(A MR tem cinco anos. E é isso.) 


 A Tia Sara obedece à MR, as usual. 

Wednesday, August 29, 2018

Sem número, número 34


Cheguei a Christchuch eram quase 21:00. A noite caíra havia pouco, mas eu era, mais uma vez, uma mulher a viajar sozinha. Alerta e vulnerável. Mesmo tratando-se de um dos países mais seguros do mundo.

Procurei um táxi que me levasse até ao hotel, no centro da cidade. Meti conversa com o condutor, paquistanês. Há quanto tempo na Nova Zelândia? Que lhe parece? O cricket aqui não é tão bom, pois não? Sei muito pouco sobre o jogo, mas estava a par da derrota dos Black Caps frente ao Paquistão algumas semanas antes.

O caminho que separa o aeroporto do centro é longo. Os subúrbios desenrolavam-se à nossa volta, sem fim à vista. Christchurch é tão diferente de Wellington. A dimensão dos subúrbios é, em parte, consequência do terramoto de 2011. Mas eu não o sabia ainda. 

Cheguei ao hotel, numa avenida que me pareceu bastante comum. Ruído de vozes num pub, um bar mais à frente e um restaurante do outro lado da estrada. Subi, troquei a camisa por uma t-shirt, escovei os dentes e regressei à rua.

De acordo com o mapa, a Cardboard Cathedral (ou Catedral Temporária) situava-se a uns dez minutos de distância, em linha recta. Fiz-me ao caminho para rapidamente perceber que estava a andar na direcção errada: estava em cima de uma ponte que surgia do lado oposto ao que devia seguir. Passei por um sem-abrigo embrulhado num saco-cama. Um transeunte deteve-se e perguntou-lhe se estava bem. A cabeça do homem emergiu de baixo do cobertor para acenar afirmativamente. O outro deixou-lhe uma moeda e desejou uma boa noite.

Finalmente no sentido correcto, em poucos metros deixei de ouvir as vozes do pub e a música do bar. Os edifícios tornavam-se mais raros, intervalados por espaços vazios que pareciam baldios.

Acompanhada pelo som dos meus passos e pelos beeps dos semáforos que mudavam de cor para peões inexistentes, cheguei a um cruzamento. Ouvi passos na gravilha. Detive-me. Um rapaz contornava uma casa cercada por uma barreira de metal que alertava para o risco de ruir.

Atravessei a estrada. As janelas de uma casa baixa derramavam luz vermelha sobre o passeio. Ouvi mariachis. A porta estava fechada, mas do lado de fora vislumbrei uma fila de caveiras. Era apenas um restaurante mexicano que fechava. Antes das dez da noite.

Ao fundo da avenida, do lado oposto, surgia a catedral. Pouco parece ter de temporário. Tem o aspecto de uma casa alpina decorada com vitrais. Ou assim me pareceu.

Um portão separa a rua da entrada da catedral. Dois alemães aproximaram-se do gradeamento. Eu avancei e um homem com o dobro do meu tamanho, maori, aproximou-se da porta, que abriu. Apontando para a minha irmã, digo-lhe que tenho permissão para entrar. Ele escuta-me em silêncio, fecha a porta e afasta-se. Regressa passado pouco tempo, acenando com a cabeça na minha direcção, sempre sem proferir uma única palavra. Eu podia entrar.