Monday, June 29, 2020

Frase do Dia #60


Das dificuldades da poesia, segundo Bohumil Hrabal, em Uma Solidão Demasiado Ruidosa:

«[...] talvez fosse o mesmo homem que, há um ano, me atacou de noite perto do matadouro de Holesovice com uma faca finlandesa: empurrou-me para um canto, tirou um papel do bolso e leu-me um poema sobre uma bela paisagem perto de Rícany e depois pediu desculpa, dizendo que, por enquanto, não encontrava outra maneira de obrigar as pessoas a ouvir os seus versos.»

Times are tough, gente. Times are tough

Thursday, June 25, 2020

Frase do Dia #59

Revisitando um velho livro de Italo Calvino, Sob o Sol Jaguar, no conto «O Rei à escuta», que descreve um rei que tem de se manter 24 horas sob 24 horas no trono, de modo a que não lho usurpem, encontra-se este trecho, que descreve o momento em que a cidade começa a arder e o rei tem, finalmente, oportunidade de escapar à sua prisão solitária:

«A cidade explodiu em chamas e em gritos. A noite explodiu, tombada dentro de si mesma. Trevas e silêncio precipitam-se dentro de si e deitam fora os seus restos de fogo e de berros. A cidade encarquilha-se como uma folha a arder. Corremos, sem coroa, sem ceptro, ninguém pode perceber que somos o rei. Não há noite mais escura que uma noite de incêndios. Não há homem mais solitário do que aquele que corre no meio de uma multidão aos berros.»

Wednesday, June 24, 2020

Frase do Dia #58

Quando estava em Macau, o jornal onde trabalhava publicava diariamente uma citação atribuída a Confúcio. A primeira coisa de que me apercebi é que Confúcio era um mestre em constatar aquilo que eu entendia como óbvio. Mais tarde, lendo um dos ensaios de Eliot Weinberger em The Ghost of Birds, encontrei isto:

«Confucianism taught that when the government is bad, one should head for the hills. (Taoism taught that, regardless of government, one should head for the hills.)»

Se os montes equivalerem ao campo, acho que estou safa. Pelo menos há tomate, alface, batata e vinho que cheguem até ao próximo inverno. 

Tuesday, June 23, 2020

Frase do Dia #57

Sobre o peso de uma cabeça e seu respetivo funcionamento, segundo María Gainza, no seu muy delicado O Nervo Ótico:

«Que gozo. Ser um espírito inquieto, sentir que o meu corpo se desmaterializa, sobretudo o meu cérebro de chumbo: libertar-me dos arrebatamentos que são a minha prisão, do magma que brota vinte e quatro horas do meu coração, transformar-me em ondas intermitentes de energia, lampejos caprichosos do Além... Enfim, parar de pensar, isso seria a glória

(E um obrigada à Sofia, que nunca se esquece de mim e vai partilhando comigo algumas das coisas bonitas que faz.)

Monday, June 22, 2020

Sem número, número 35

Como descrever aquilo que nos aconteceu e vem a acontecer desde há três meses? O post pecará por tardio: o que era estranho em Março, já se tornou comum em Junho, mas sinto ainda ocasionalmente aquela sensação de que isto não é normal. E, na verdade, não pode sequer sê-lo tão em breve. Os números corroboram esta ideia. 

O facto é que, se, para alguns, isto é o desejado regresso à "normalidade", quanto a mim, só agora começo a sentir-me desconfortável na nova realidade. Tive a sorte (será?) de ir de férias antes do início da quarentena oficial e regressar da Catalunha menos de 24 horas antes das fronteiras encerrarem. Cheguei a casa numa sexta-feira e segunda-feira comecei de  a trabalhar a partir de casa. Estava, apesar de tudo - apesar do receio de contágio, da impossibilidade de visitar a família - descansada, e os quinze dias que se seguiram foram o meu período mais produtivo.

À medida que o tempo tem passado, é-me cada vez mais difícil agarrar à rotina, à produtividade, a cumprir as listas de tarefas. O que é isto? Como voltar a ser a mesma pessoa quando tudo à nossa volta está mudado, quando não somos os mesmos, ainda que a nossa natureza permaneça imutável? Não sejamos ingénuos: sim, houve gestos de solidariedade, houve-os, felizmente. Mas não se deixem enganar: o lobo não se transformou em cordeiro e a serpente em andorinha. A nossa natureza permanece a mesma, apenas mais visível. As bestas apenas ficaram mais bestas.