Wednesday, July 8, 2020

Tudo aquilo que um livro significa, segundo Bohumil Hrabal

Um dos trechos - não se pode dizer que seja uma frase - de que mais gosto e que ilustra tudo aquilo que um livro é, ainda que hoje em dia a produção de um livro esteja tecnologicamente mais avançada e já não existam lugares como esse onde Hanta trabalhava em Praga:


«Essas férias na Grécia abalaram-me; eu, que me projectava na Grécia antiga apenas através da leitura de Gerder e Hegel e que me tinha iniciado na visão dionísica do mundo em Friedrich Nietzsche [...]. Agora, estão todos a trabalhar, bronzeados [...], não estão nem um pouco emocionados pelo facto de nas férias irem à Hélada, sem nada saberem sobre Aristóteles, Platão e Goethe, braço prolongado da Grécia antiga, trabalham calmamente e continuam a arrancar o interior dos livros e das suas capas, arremessando as páginas apavoradas e eriçadas de medo sobre o tapete rolante, com indiferença e calma, sem imaginarem tudo aquilo que um livro significa; afinal, alguém teve que escrever o livro, alguém teve que ilustrá-lo, alguém teve que compô-lo, alguém teve que fazer a revisão, alguém teve que compô-lo de novo e de novo rever antes de o compor definitivamente, alguém teve que pô-lo na impressão e alguém teve que lê-lo pela última vez antes de voltar a pô-lo, folha a folha, numa máquina que o encadernava, alguém teve que pegar nos livros e atá-los num pacote, e alguém teve que escrever a conta por todo o trabalho que o livro deu, e alguém teve que decidir que o livro não devia ser lido, alguém teve que censurá-lo e dar ordem de o deitarem no lixo, alguém teve que pôr os livros no armazém, alguém teve que trazer os pacotes de livros até aqui, onde os operários e as operárias com luvas vermelhas, azuis, amarelas e alaranjadas arrancam as entranhas dos livros, deitando-as sobre o tapete rolante que, silenciosamente, mas com movimentos certeiros, levava as páginas eriçadas para debaixo da prensa gigantesca que as esmaga em pacotes, e os pacotes vão para as fábricas de papel que os transformam em papel branco, inocente, imaculado, sem a mancha das letras, para que novos livros possam ser impressos...»

Algures em Uma Solidão Demasiado Ruidosa