Saturday, October 31, 2020

Sem número, número 44: The side effects of the aftershocks



Il tuffatore, Paestum

Será este um dos efeitos da pandemia? Este mergulho na memória? Recordamos mais, viajamos nas profundidades da memória porque "vivemos" menos? Convivemos menos, estamos com menos pessoas, os momentos que temos com estas poucas são mais raros e não viajamos, não visitamos outros lugares, ou os amigos que vivem noutros países. Por isso, dou por mim inevitavelmente a relembrar o que já vivi, o que já aconteceu e foi emocionante, inesquecível, até. 


Vasculhamos livros, caixas, cartas, postais. Vamos às pastas do computador, os baús modernos. Recuperamos fotos, vídeos, faixas de música. E mergulhamos nas recordações do mesmo modo que se entra nas águas quentes do Mediterrâneo. Sentimos a diferente temperatura, o mar que molha a pele e flutuamos, essa maravilhosa sensação que evoca uma dimensão distante. Recordar é assim. Produz efeitos semelhantes aos de uma droga. E, à semelhança das substâncias psicotrópicas, infelizmente (muito infelizmente), não podemos ceder o volante à memória. Corremos o risco de ficar viciados no passado, no que fomos, no que sabemos agora ter sido o nosso melhor, o tempo em que fomos belos e felizes. 


Tomamos decisões no presente que serão em breve passado, tentando trilhar um futuro que nos seja confortável. Mas nunca sabemos exactamente o que estamos a fazer. Viver é um acto de fé, em si. Esperar o melhor (das decisões, das pessoas), sabendo que não sabemos nada, nunca sabemos nada (como poderíamos, se não conseguimos prever o futuro?). 


Se temo pelo futuro? Temo. Muito. Racionalmente, sabíamos todos - excepto os cépticos tontos - que estes meses de Outono (e o Inverno que se aproxima) seriam assim, de contornos difíceis e nebulosos. Mas eu temo, à mesma, porque o futuro é uma incógnita. Temos de sair de casa, viver, mas o medo de transportar algo invisível connosco que acidentalmente mate toda a nossa família nuclear, é assustador. Muito assustador. E depois, como serão os próximos meses? Haverá um emprego para trabalhar? Dinheiro para viver? E alegria? 


O optimismo começa a esgotar-se. E, mesmo aguardando o ano inteiro pela chegada da quadra natalícia, só posso dizer que não consigo sentir-me feliz. Não consigo entender estas promoções, campanhas para comprar presentes (as Black Friday e Cyber Mondays desta vida) quando a economia se afunda e despoja tantos do trabalho, do seu ganha-pão. Este será um Natal difícil. E talvez nem o venha a ser tanto para mim. Mas para outros. 


A instabilidade abala-me o estômago. O medo entra na pele e turva o olhar. É isso. Não consigo olhar para o futuro com os óculos do optimismo. E talvez seja por isso que me vou refugiando num passado que foi feliz e trouxe amor. Algo raro e com o qual não sou presenteada com frequência. Talvez seja por isso que busco conforto na memória. E nas histórias. 

Friday, October 23, 2020

Blogception #4: Um blogue dentro de um blogue

Ontem, foi o aniversário de um querido amigo e ao jantar partilhámos histórias de viagens, de lugares que visitámos juntos e outros onde ambos estivemos, mas em separado. Um desses sítios foi Bruges, onde fui muito feliz e bebi muita cerveja. Outros tempos, tutta un'altra vita

(ALWAYS) LOOK ON THE BRIGHT SIDE OF LIFE

Há muito tempo, num post muito muito distante, declarei que a minha vida não dava um filme e teorizei sobre rotinas, afirmando que, apesar de aborrecidas, são necessárias. Esta semana, como que sentindo urgência em provar a veracidade dessa teoria, saí da minha rotina laboral, aventurando-me nuns poucos dias de férias, e, consequentemente esqueci-me que aquela era semana de Preguiça.

«Vergonha!, irresponsabilidade!», gritava a minha consciência. Como podia ser, quando anoto religiosamente a periodicidade das publicações na minha agenda e no calendário disponibilizado pelos senhores da Google? A verdade é que me esqueci porque foi uma semana atípica e só no próprio dia me dei conta do lapso.

Mas perdoe-me a meia dúzia de cidadãos leitores que duas vezes ao mês perscruta este canto. Perdoem-me, pois. Ora, encontrando-me vazia de ideias (mas cheia de chocolate), e perdendo minutos da minha vida no Facebook, apercebi-me, subitamente, graças aquelas compilações de memórias que a coisa agora faz, que o último ano (desde Fevereiro do ano passado para cá) foi dos diabos: há um ano despedia-me temporariamente do Minudências, por motivos relacionados com a minha saúde, e amaldiçoava com alguma frequência a minha mudança de cidade. Pesava sobre mim muito trabalho, uma vida não-social e uma consciência que felizmente não tem figura humana ou animal, caso contrário uma de nós já teria ido parar ao hospital vítima de violência física. 

Um ano depois, em Março de 2016, ainda a procissão vai no adro e dou por mim a verificar que já cumpri umas quantas resoluções de Ano Novo: terminar a leitura d’O Bom Soldado Svejk (check), visitar uma nova cidade (Bruges, check) e arranjar um novo corte de cabelo (finalmente, check).* Sim, não elevei muito a fasquia, mas quem disse que as resoluções têm alterar a nossa vida radicalmente? Um ano depois, raras são as semanas em que após o trabalho não tenho já uma série de actividades planeadas, que podem incluir uma ida ao cinema ou ao teatro, ler um livro numa esplanada, beber copos com os colegas de trabalho no final do horário de expediente, escrever coisas novas, ver um filme no conforto do lar, conviver com os amigos (alguns novos), ou dormir uma sesta.

Não são tarefas que mudam o mundo, mas são pequenas coisas que me impelem a seguir em frente, mesmo nos momentos menos bons. Aquelas alturas em que percebemos que não estamos a fazer aquilo com que sempre sonhámos, nem moramos onde gostaríamos de morar, nem temos algumas das coisas que pensámos que teríamos por esta altura. As sombras existem, as memórias de momentos mais felizes empurram-nos para o chão e a desilusão está aí mesmo ao virar da esquina. Cada um faz o que pode e cada qual desenrasca-se como sabe (ou como intui). Nascemos sem livro de instruções (os livros, sempre os livros!) e por mais que os pais, os avós, os tios, os primos, os amigos mais velhos, os amigos da mesma idade, pessoas estranhas, nos digam para fazer assim ou assado, nada substitui a experiência e a importância de uma queda.

Ao contrário do que fazia quando era pequena, ao ler os policiais de Agatha Christie – ou seja, fazer batota e consultar o final para verificar se o meu suspeito correspondia ao criminoso – a vida não permite dar saltos em frente só para ter a certeza se a história vai acabar bem. E, ao encontrarmo-nos aqui, presos na nossa própria narrativa, a única coisa a fazer, parece-me, é continuar em frente, página a página, capítulo a capítulo, assobiando (como recomenda Eric Idle em «Always Look on the Bright Side of Life») até ao fim.


* Também fiz uma tatuagem evocando o meu adorado Dino Buzzati. Mas não o disse porque na altura era um quase-segredo. Publicado inicialmente a 14 de Março de 2016, sem alterações.

Wednesday, October 21, 2020

Equilíbrio

Se fosse fácil encontrar um equilíbrio, todos seriamos acrobatas e viveríamos no ar, entre cordas e piruetas. Seria fabuloso, assim uma espécie d'O Barão Trepador circense. Mas não é o caso e o narrador não é Italo Calvino: não é fácil manter o equilíbrio e, por maior que seja o esforço, os pés falham e, quando se dá conta, estamos na rede (quando existe uma).

O equilíbrio é o «estado neutro entre duas forças opostas», define a Treccani. É o que, a meu ver, deveria ser sinónimo de «ideal normal». Ser equilibrado deveria corresponder à norma. Seguir a direito pelo estreito caminho de cabras neste desfiladeiro pelo qual caminhamos, sem escorregar ou cair. Como os acrobatas, deveríamos tentar manter-nos ali, na corda, pé ante pé, com a respiração certa, até chegarmos ao outro lado. Mas o equilíbrio não é fácil, ao contrário da queda.

Associo, assim, o conceito de dualidade, ao equilíbrio. O que me agrada. Apesar do equilíbrio estar também muito próximo da imprevisibilidade. O que é, para mim, um dos poucos confortos que temos - se pensarmos que temos apenas uma única certeza trágica. Sabemos que vamos morrer. Isso e os impostos são os únicos elementos que temos como adquiridos. O resto é uma incógnita. 

Os optimistas sairão à rua em festa perante a constatação, enquanto os pessimistas optarão por ficar em casa, não vá o diabo tecê-las: todos sabem que o mafarrico se esconde atrás da porta, normalmente do lado de fora, claro.

Não sou optimista, mas a fatalidade também me parece algo de exagerado, como os poemas de amor dos autores românticos alemães. Esse será o meu único equilíbrio: esperar sempre o pior cenário possível com um fio de esperança. Aí fico no meio. Não por ser onde está a virtude, mas porque, excepcionalmente, procuro distribuir equitativamente o peso, de modo a tocar em ambos os lados. Excepcionalmente. Eu, que sou uma criatura de forças opostas que torturam os poucos que de mim se abeiram. Não concebo, contudo, outra forma de viver que não esta, de oposto em oposto, dando o meu melhor para me equilibrar e não cair. E, se tiver de cair, tentando não o fazer de vestido e de perna no ar (situações que já ocorreram concomitantemente, à porta de casa).

Monday, October 5, 2020

Blogception#3: Um blogue dentro de um blogue

Agora que o Outono se instalou em pleno, dei por mim a pensar naquele texto produzido para a minha estreia na Preguiça-Mãe de Leiria e publicado no tasco Minudências algures na segunda quinzena de Setembro de 2015.

RECOMEÇAR

Há quem diga que os começos são difíceis. Abrir um novo caminho, dar início a uma nova tarefa. Eu ouço e penso nos recomeços. Os inícios têm a vantagem se colocar à nossa frente, sem mácula, limpos, contendo em si toda a esperança, toda a energia e todo o optimismo do que é novo.

Os recomeços são mais complicados. Repousam sobre obras inacabadas, a maior parte das vezes estão cheios de falhas, gralhas, erguem-se sobre erros do passado, obrigando a um esforço extra, frequentemente executado de forma contrariada.

E ainda assim, prefiro-os. Há nos recomeços a possibilidade de aprender com o que já está feito, mesmo que cheio de imperfeições, pejado de falhas. Não quero depositar toda a minha fé nos começos limpos, perfeitos. Desejo um recomeço que me obrigue a ser melhor, a evoluir. A aperfeiçoar-me, não obstante o que me antecedeu. Há uma certa beleza inerente aos Prisioneiros inacabados de Michelangelo Buonarroti que o David, do topo do seu pedestal, no seu esplendor marmóreo simplesmente não contém.

O Outono é para mim, então, a época dos perfeitos recomeços: não é o Ano Novo, o civil, ou o chinês, ainda que o ano se aproxime do seu fim e pouco falte para o seu término. No entanto, o Outono representa o final do Verão, que constitui para muitos o culminar do calendário.

A excitação do Verão desaparece, as horas de luz diminuem e as árvores, esses seres sábios (que Tolkien bem soube reconhecer), preparam-se para o tempo que há-de vir e recolhem-se à sua tranquilidade. É tempo de reflectir sobre o que fomos e fizemos nas duas últimas estações. Fomos bons para o(s) próximo(s)? Rimos o suficiente? Teremos sido felizes na conta certa?

Entro no Outono de férias, sem o rodopio do calor do Verão e a agitação das hormonas. Chego ao Outono com a tranquilidade das temperaturas frescas e o vento que agita os cabelos e as folhas que cobrem as calçadas.

Chego às férias ao mesmo tempo que a rentrée literária invade as livrarias. Folheio catálogos, leio listas, mas não há muito que me entusiasme. Noto um conjunto de títulos que assinalam o fim da Segunda Guerra Mundial e evocam os horrores do Holocausto. Não sei se precisamos de mais livros sobre a miséria e a crueldade humana. Num momento como este, talvez fosse mais importante celebrar a bondade dos homens. Não que ela abunde. Mas por isso mesmo: porque deve ser valorizada e apreciada e não nos devemos deixar normalizar pela banalidade do mal.

Há um livro, Uma Cana de Pesca para o Meu Avô, de Gao Xingjian, o primeiro Nobel chinês (mas que não é tido como tal por se encontrar no exílio há muitos anos), que embora não sendo um livro extraordinário, tratando-se de uma colecção de breves trechos, tem passagens belas. Numa delas, de que me recordo frequentemente, em que o avô dialoga com o neto (se a memória não me atraiçoa) diz-se que os homens são maus e que o avô prefere os tigres aos homens maus. Ainda assim, ele prefere debruçar-se sobre a «bondade do coração humano». E talvez também nós o devêssemos fazer. Não só agora, mas para sempre.


(Com algumas alterações.)

Saturday, October 3, 2020

Cenas e coisas que tais aleatórias #4

Robert Smith cantava que à sexta-feira estava apaixonado. Às sextas, eu diluo-me em álcool, à espera que a minha essência ou os meus demónios se evaporem.

Mergulho em taças de vinho à espera que os ombros abandonem o estado de alerta e permito que a minha mente recorde todos os minutos bonitos que antecederam os fins. Por instantes, um sorriso aflorará e lembrar-me-ei do dito «Mais vale ter amado...». (O conforto é válido em qualquer forma, desde que não magoe ninguém.)

Às sextas, ao final da tarde, suspende-se a soma das horas e o tempo parece eterno perante a perspetiva do fim-de-semana. Não são as vistas que encurtam. É só a vida que encolhe nos dias úteis. E nós que somos mais pequeninos nas horas que nos sobram.

(O Iggy canta melhor aquilo que penso do que o Robert. Só isso.)

Friday, October 2, 2020

Sem número, número 43: A vida, modo de usar

«Parabéns. É o feliz proprietário de um corpo humano. A partir deste momento poderá executar todo um conjunto de actividades, como respirar, comer, dormir, falar, pensar (diferentes níveis dependerão do modelo em questão), andar, entre tantas outras. Iremos guiá-lo passo a passo para que possa levar a cabo todas estas funções em segurança. Sem se esbardalhar.»

Não, não se trata do parágrafo inicial de A vida, modo de usar, de Georges Perec, mas é assim que imagino que deveria ser a introdução do manual de instruções com o qual todos deveríamos vir equipados à nascença. Mas, tal como uma compra manhosa no OLX, também o nosso binómio consciência-corpo chega à idade adulta sem fazer a mínima ideia como operar este aparelho. 

Haverá os mais tech-savvy que alegarão, à partida, que está tudo controlado, já leram muito sobre o funcionamento e é fácil: chegas aos 30, emprego, namorado/a, casamento, filhos e está feito. A partir daí é deixar correr o software e confiar na qualidade do hardware

Outros, como eu, por mais que leiam o manual e peçam ajuda em fóruns online (e offline)continuam com dificuldades em operar o aparelho. É que, quando se pensa que as atualizações foram feitas e o hardware é bom, subitamente, o programa começa a dar erro. E, com frequência, o apoio técnico não consegue ajudar. Mesmo que equipamento se encontre dentro da garantia.

Era bom que a vida (e nós) fosse(mos) um pouco assim, à semelhança de um computador (ou um outro aparelho qualquer), e pudéssemos chamar um técnico que nos ajudasse a perceber porquê, de repente, nada funciona (era bom, excepto aquela parte do «sair e voltar a entrar», ou «desligue e volte a ligar». Acho que não ia dar bom resultado). 

«Relationship malfunction? Epá, espera: vamos ver o que é que está a dar erro.» E vinha daí o técnico, analisava o código, pensava, corria uns testes e puff, ia-se a ver, era um bug e a coisa resolvia-se. Só que não. A verdade é que estamos sós, estamos rodeados de bugs e só nos temos a nós próprios para os detetar. Ou para os assumir.

Sem número, número 42: Do hábito

210 dias. Passaram 210 dias desde a última vez que estive na empresa onde trabalho. Hoje regressei, ainda que apenas para buscar algumas coisas. 

O percurso foi o habitual. O mesmo que fiz, diariamente, cinco dias por semana, alguns feriados incluídos, com excepção das férias e baixas, entre o dia 12 de Maio de 2014 e o dia 6 de Março de 2020. Ou seja, cerca de seis anos. Durante cerca de seis anos percorri esse caminho que, por volta das 6h30 da manhã, sem trânsito ou chuva, demora dez minutos a fazer.

O itinerário foi o mesmo, ainda que num horário diferente. E, para meu espanto, após atravessar a ponte e contornar algumas rotundas, hesitei no caminho. Foram apenas instantes, uns segundos, mas a hesitação surpreendeu-me.

Nestes seis anos de regresso a Coimbra, houve fins-de-semana em que, rumando a casa dos meus pais (que se situa no sentido oposto ao da empresa), dei por mim a caminho do trabalho. O corpo entrou em modo piloto automático - talvez o cansaço ou a cabeça a mil - e seguiu a rota dos dias úteis.

Supostamente, old habits die hard. Na verdade, descobri hoje, são apenas necessários 210 dias para quebrar uma rotina. Mas talvez nem seja preciso tanto tempo para matar um hábito. Do mesmo modo que não é impossível impor um novo. Tal como um ditador, após a queda de um, é sempre possível substituí-lo por outro. Basta tentar. 

Thursday, October 1, 2020

Sem número, número 41: Memória selectiva

Recordo-me de ter lido algures, há não muito tempo, que a memória não é uma coisa estática e se transforma com o passar do tempo. Isto é, os acontecimentos, como os recordamos, não serão iguais na nossa mente aos 30 ou aos 60, porque a memória trabalha sobre eles (creio eu) de acordo com as nossas vivências e a passagem do tempo e, possivelmente - I ain't no neurologist - com a morte dos pobres neurónios. [Acho que era maizómenos isto que o artigo que li dizia.]

Isto, enquanto leiga e por meio do senso comum, faz todo o sentido para mim: os eventos que nos trazem felicidade, certamente serão recordados de modo florido, bonito, com um sorriso na cara. As tragédias, essas, serão lembradas com tristeza. Ou serão, até, simplesmente esquecidas.

É curioso como os sentimentos agem e influenciam as recordações. E não é, então, de espantar, que duas pessoas, que partilharam um acontecimento, descrevam o sucedido de modo tão díspar. 

Lá em casa este fenómeno constata-se ao domingo, normalmente durante o almoço. Não há nada que mais me maravilhe e tire do sério do que as versões que a minha mãe tem de alguns eventos da minha vida. O modo como os descrevemos fazem pensar que uma de nós estaria embriagada na altura (provavelmente eu, mas apenas por uma questão de estatística). No entanto, o facto de a minha mãe ter 63 anos e eu 35, e termos cérebros em condições diferentes deve estar na origem dessa diversidade.

Outro aspeto que me maravilha é o modo como as memórias dolorosas se esquecem perante as felizes. Exemplo: uma mulher dá à luz uma criança após horas de dores intensas e horríveis. Passado um ano ou dois, a mulher decide ter outro filho e sujeitar-se novamente a longas horas de sofrimento físico para pôr o bebé cá fora. Não creio que haja muitas situações em que uma pessoa mentalmente sã decida sujeitar-se a uma dor que já conhece, ou a uma situação que sabe que será difícil fisicamente (os adeptos da cirurgia estética também o fazem, sim, mas eu referia-me a «pessoas mentalmente sãs»). 

Segundo consta, a lembrança da dor vai-se diluindo e, as memórias felizes acabam por se sobrepor à recordação das horas de sofrimento. (Claro que não sucede em todos os casos, haverá mulheres que tiveram partos tão terríveis que nunca mais quiseram arriscar repetir a experiência. Mas isso é como tudo na vida. Há a maioria e depois há as excepções. Adiante.) Creio que há um mecanismo biológico ligado a isto, que serve para assegurar a perpetuação da espécie. O que faz todo o sentido.

O que me surpreende é quando não se trata de manter a presença humana no planeta e, ainda assim, a mente age de modo semelhante com coisas tontas. Como adoçar as memórias de um relacionamento tumultuoso: quando damos conta, ainda que, factualmente, 90% do tempo tenha sido passado a discutir, os 10% de arco-íris e unicórnios (ou sunshine and rainbows) prevaleçam sobre tudo o resto e seja isso que guardamos do/da mais-que-tudo. Mesmo que ele/ela seja uma besta.

Pior, só mesmo quando a memória relega para segundo plano as lembranças do sofrimento e rejeição passados e dá lugar aos (poucos) momentos felizes que se tiveram, simplesmente porque nos sentimos vulneráveis no presente. E depois, damos por nós a pensar que talvez não fosse má ideia enviar uma mensagem, ou escrever uma carta à besta que nos deu com os pés. 

Enfim. É tudo espectacular, não é?