Agora que o Outono se instalou em pleno, dei por mim a pensar naquele texto produzido para a minha estreia na Preguiça-Mãe de Leiria e publicado no tasco Minudências algures na segunda quinzena de Setembro de 2015.
RECOMEÇAR
Há quem diga que os começos são difíceis. Abrir um novo caminho, dar início a uma nova tarefa. Eu ouço e penso nos recomeços. Os inícios têm a vantagem se colocar à nossa frente, sem mácula, limpos, contendo em si toda a esperança, toda a energia e todo o optimismo do que é novo.
Os recomeços são mais complicados. Repousam sobre obras inacabadas, a maior parte das vezes estão cheios de falhas, gralhas, erguem-se sobre erros do passado, obrigando a um esforço extra, frequentemente executado de forma contrariada.
E ainda assim, prefiro-os. Há nos recomeços a possibilidade de aprender com o que já está feito, mesmo que cheio de imperfeições, pejado de falhas. Não quero depositar toda a minha fé nos começos limpos, perfeitos. Desejo um recomeço que me obrigue a ser melhor, a evoluir. A aperfeiçoar-me, não obstante o que me antecedeu. Há uma certa beleza inerente aos Prisioneiros inacabados de Michelangelo Buonarroti que o David, do topo do seu pedestal, no seu esplendor marmóreo simplesmente não contém.
O Outono é para mim, então, a época dos perfeitos recomeços: não é o Ano Novo, o civil, ou o chinês, ainda que o ano se aproxime do seu fim e pouco falte para o seu término. No entanto, o Outono representa o final do Verão, que constitui para muitos o culminar do calendário.
A excitação do Verão desaparece, as horas de luz diminuem e as árvores, esses seres sábios (que Tolkien bem soube reconhecer), preparam-se para o tempo que há-de vir e recolhem-se à sua tranquilidade. É tempo de reflectir sobre o que fomos e fizemos nas duas últimas estações. Fomos bons para o(s) próximo(s)? Rimos o suficiente? Teremos sido felizes na conta certa?
Entro no Outono de férias, sem o rodopio do calor do Verão e a agitação das hormonas. Chego ao Outono com a tranquilidade das temperaturas frescas e o vento que agita os cabelos e as folhas que cobrem as calçadas.
Chego às férias ao mesmo tempo que a rentrée literária invade as livrarias. Folheio catálogos, leio listas, mas não há muito que me entusiasme. Noto um conjunto de títulos que assinalam o fim da Segunda Guerra Mundial e evocam os horrores do Holocausto. Não sei se precisamos de mais livros sobre a miséria e a crueldade humana. Num momento como este, talvez fosse mais importante celebrar a bondade dos homens. Não que ela abunde. Mas por isso mesmo: porque deve ser valorizada e apreciada e não nos devemos deixar normalizar pela banalidade do mal.
Há um livro, Uma Cana de Pesca para o Meu Avô, de Gao Xingjian, o primeiro Nobel chinês (mas que não é tido como tal por se encontrar no exílio há muitos anos), que embora não sendo um livro extraordinário, tratando-se de uma colecção de breves trechos, tem passagens belas. Numa delas, de que me recordo frequentemente, em que o avô dialoga com o neto (se a memória não me atraiçoa) diz-se que os homens são maus e que o avô prefere os tigres aos homens maus. Ainda assim, ele prefere debruçar-se sobre a «bondade do coração humano». E talvez também nós o devêssemos fazer. Não só agora, mas para sempre.
(Com algumas alterações.)
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