Thursday, October 1, 2020

Sem número, número 41: Memória selectiva

Recordo-me de ter lido algures, há não muito tempo, que a memória não é uma coisa estática e se transforma com o passar do tempo. Isto é, os acontecimentos, como os recordamos, não serão iguais na nossa mente aos 30 ou aos 60, porque a memória trabalha sobre eles (creio eu) de acordo com as nossas vivências e a passagem do tempo e, possivelmente - I ain't no neurologist - com a morte dos pobres neurónios. [Acho que era maizómenos isto que o artigo que li dizia.]

Isto, enquanto leiga e por meio do senso comum, faz todo o sentido para mim: os eventos que nos trazem felicidade, certamente serão recordados de modo florido, bonito, com um sorriso na cara. As tragédias, essas, serão lembradas com tristeza. Ou serão, até, simplesmente esquecidas.

É curioso como os sentimentos agem e influenciam as recordações. E não é, então, de espantar, que duas pessoas, que partilharam um acontecimento, descrevam o sucedido de modo tão díspar. 

Lá em casa este fenómeno constata-se ao domingo, normalmente durante o almoço. Não há nada que mais me maravilhe e tire do sério do que as versões que a minha mãe tem de alguns eventos da minha vida. O modo como os descrevemos fazem pensar que uma de nós estaria embriagada na altura (provavelmente eu, mas apenas por uma questão de estatística). No entanto, o facto de a minha mãe ter 63 anos e eu 35, e termos cérebros em condições diferentes deve estar na origem dessa diversidade.

Outro aspeto que me maravilha é o modo como as memórias dolorosas se esquecem perante as felizes. Exemplo: uma mulher dá à luz uma criança após horas de dores intensas e horríveis. Passado um ano ou dois, a mulher decide ter outro filho e sujeitar-se novamente a longas horas de sofrimento físico para pôr o bebé cá fora. Não creio que haja muitas situações em que uma pessoa mentalmente sã decida sujeitar-se a uma dor que já conhece, ou a uma situação que sabe que será difícil fisicamente (os adeptos da cirurgia estética também o fazem, sim, mas eu referia-me a «pessoas mentalmente sãs»). 

Segundo consta, a lembrança da dor vai-se diluindo e, as memórias felizes acabam por se sobrepor à recordação das horas de sofrimento. (Claro que não sucede em todos os casos, haverá mulheres que tiveram partos tão terríveis que nunca mais quiseram arriscar repetir a experiência. Mas isso é como tudo na vida. Há a maioria e depois há as excepções. Adiante.) Creio que há um mecanismo biológico ligado a isto, que serve para assegurar a perpetuação da espécie. O que faz todo o sentido.

O que me surpreende é quando não se trata de manter a presença humana no planeta e, ainda assim, a mente age de modo semelhante com coisas tontas. Como adoçar as memórias de um relacionamento tumultuoso: quando damos conta, ainda que, factualmente, 90% do tempo tenha sido passado a discutir, os 10% de arco-íris e unicórnios (ou sunshine and rainbows) prevaleçam sobre tudo o resto e seja isso que guardamos do/da mais-que-tudo. Mesmo que ele/ela seja uma besta.

Pior, só mesmo quando a memória relega para segundo plano as lembranças do sofrimento e rejeição passados e dá lugar aos (poucos) momentos felizes que se tiveram, simplesmente porque nos sentimos vulneráveis no presente. E depois, damos por nós a pensar que talvez não fosse má ideia enviar uma mensagem, ou escrever uma carta à besta que nos deu com os pés. 

Enfim. É tudo espectacular, não é?

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