Friday, October 2, 2020

Sem número, número 43: A vida, modo de usar

«Parabéns. É o feliz proprietário de um corpo humano. A partir deste momento poderá executar todo um conjunto de actividades, como respirar, comer, dormir, falar, pensar (diferentes níveis dependerão do modelo em questão), andar, entre tantas outras. Iremos guiá-lo passo a passo para que possa levar a cabo todas estas funções em segurança. Sem se esbardalhar.»

Não, não se trata do parágrafo inicial de A vida, modo de usar, de Georges Perec, mas é assim que imagino que deveria ser a introdução do manual de instruções com o qual todos deveríamos vir equipados à nascença. Mas, tal como uma compra manhosa no OLX, também o nosso binómio consciência-corpo chega à idade adulta sem fazer a mínima ideia como operar este aparelho. 

Haverá os mais tech-savvy que alegarão, à partida, que está tudo controlado, já leram muito sobre o funcionamento e é fácil: chegas aos 30, emprego, namorado/a, casamento, filhos e está feito. A partir daí é deixar correr o software e confiar na qualidade do hardware

Outros, como eu, por mais que leiam o manual e peçam ajuda em fóruns online (e offline)continuam com dificuldades em operar o aparelho. É que, quando se pensa que as atualizações foram feitas e o hardware é bom, subitamente, o programa começa a dar erro. E, com frequência, o apoio técnico não consegue ajudar. Mesmo que equipamento se encontre dentro da garantia.

Era bom que a vida (e nós) fosse(mos) um pouco assim, à semelhança de um computador (ou um outro aparelho qualquer), e pudéssemos chamar um técnico que nos ajudasse a perceber porquê, de repente, nada funciona (era bom, excepto aquela parte do «sair e voltar a entrar», ou «desligue e volte a ligar». Acho que não ia dar bom resultado). 

«Relationship malfunction? Epá, espera: vamos ver o que é que está a dar erro.» E vinha daí o técnico, analisava o código, pensava, corria uns testes e puff, ia-se a ver, era um bug e a coisa resolvia-se. Só que não. A verdade é que estamos sós, estamos rodeados de bugs e só nos temos a nós próprios para os detetar. Ou para os assumir.

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