Tuesday, November 6, 2012

Tesourinho deprimente #2



Piaggio I e II, algures entre 11 e 15 de Setembro de 2005. Este era o veículo de transporte do incorniciatore vizinho, que morava dois números abaixo do prédio do nosso apartamento. Não, não estou a chamar nomes a ninguém: um incorniciatore é um emoldurador. Na fotografia I não se vê bem, mas na montra estavam algumas daquelas molduras grandes e douradas que costumam ser usadas em quadros de museu. Uma coisa bem à Renascença, bem típico de Florença.


Piaggio III, algures em Janeiro de 2009. No meu regresso a Florença, volvidos três anos, não podia deixar de passar naquela que foi a minha rua durante algum tempo. E lá estava o mesmo veículo do senhor emoldurador. Estacionado exactamente no mesmo sítio onde estava há três anos. É o tipo de cena que faz pensar que realmente ele há coisas que nunca mudam.

Sunday, November 4, 2012

Frase do Dia #34

Esta é tão velhinha, não só nas suas origens, mas na leitura desta leitora:

«Cismo, por vezes, no que dirão de nós os futuros historiadores. Bastar-lhes-á uma frase para definir o homem moderno: fornicava e lia jornais.»

Camus escreveu isto, colocou o dito na voz de Jean-Baptiste Clamence, o tal do juiz-penintente d'A Queda, posicionou-o em Amesterdão, junto de um canal qualquer, com um homem qualquer - isso não é importante até porque o livro é um longo e gigantesco falso diálogo - e pronto, ficou gravado para sempre. Um dos desafios que me tenho colocado nos últimos anos, desde que li o livro, é tentar adaptar o dito à contemporaneidade. E assim, alteraria a última parte da última frase para «fornicava e lia notícias no seu iPad .» (Ou tablet, vá.)

Thursday, November 1, 2012

Sem número, número 9

Os pés iam deslizando pelo tatami, cruzando os corredores iluminados pela tranquilidade dos raios de sol que as paredes de papel deixavam atravessar. Um shogun sentado, imóvel, de olhar vazio, ocupava o centro da sala, enquanto uma gueixa servia chá. A cena parecia preparada para receber alguém. Um estrangeiro, talvez. Ela olhava as cores e imaginava o cenário com vida, onde pessoas feitas de carne e osso se movimentavam vagarosamente. Caminhava devagar, pisando o tatami suavemente. Sentia a lycra dos collants roçar o chão e o frio que restava do Inverno já quase a chegar ao fim. Um ligeiro arrepio subiu ao pescoço: era uma sensação agradável.

Era a segunda vez que caminhava descalça, naquela manhã. Antes do castelo, visitara um templo, onde, como é habitual, fora obrigada a retirar os sapatos. Por breves momentos assistira a uma cerimónia cujo fim desconhecia, mas onde o que suponha ser um monge ou padre retirara uma série de objectos da manga, empunhando-os de seguida. Um leque, um par de óculos, um pedaço de papel, a partir do qual lera (o que lhe parecia serem) algumas frases. Sentou-se no chão. Sentiu-se livre, como se, momentaneamente, o espírito tivesse libertado o corpo.

Tranquila, assistia aos gestos lentos do cerimonial. O mestre – chamemos-lhe assim – ergueu o leque. Depois, retirou da funda manga um pequeno rolo de papel, a partir do qual entoava algumas palavras na sua língua materna. Pelo desconhecimento do japonês, deixou-se embalar pelos sons que o ar trazia suspensos. Cheirava a incenso e, ao fundo, Buda vigiava os presentes. Uma mulher segurava as portas deslizantes e, delicadamente, fez-lhe um sinal, pedindo que saísse. Levantou-se, devagar, e saiu. Partia pacificada, ainda que sem perceber o que lhe acontecera.

À tarde, no castelo, quando se descalçou, sentiu que a luz filtrada pelas paredes de papel a atingia. Tudo parecia diferente: sentia o chão, mas era como se flutuasse. Deixava os pés deslizarem no tatami e descobria o seu toque, sentia a textura. Percorria as diversas salas, onde se erguiam ilustrações naturalistas, decorando cada reflexo de luz e memorizando cada sensação nova.

Quando finalmente saiu para a rua, sentou-se nos degraus de madeira, calçando os sapatos. Inesperadamente, sentiu, pela primeira vez, o pé no sapato. Lembrou-se da sua infância, da história de Cinderela. Sorriu. Encontrara o seu - o sapato - e também se sentia feliz. Ou, pelo menos, assim lhe pareceu.

Recordar-se-á, para sempre, dos primeiros passos na gravilha depois de ter atado os ténis. Sentiu a terra como parte de si; sentia cada pedra que pisava. Ouviu algures o som do koto, o instrumento de cordas japonês. Estava em lado nenhum. O corpo absorvia as sensações e pacificamente acolhia-as no seu interior transformando-as num sentimento de profunda tranquilidade. Cada passo era sossegado, ponderado. Cada passo uma viagem. E nessa viagem física, nessa breve caminhada, encetou uma viagem interior que a pacificou. E talvez tenha, até, sentido felicidade.

[Nesse dia erguia-se um sol primaveril, como este outonal, que não aquece os corpos, mas aconchega os corações.]


Ó, a cara de felicidade.


29 de Outubro de 2008 - 31 de Outubro de 2012