Há momentos de grande ironia. Ultimamente, a ironia veio esfregar-se na minha cara, embora sem me ter feito sorrir: apercebi-me que, tendo redigido uma tese sobre criatividade, sou uma pessoa onde tal capacidade está ausente.
Passei cerca de um ano e meio a ler livros sobre o tema e afins e a escrever sobre isso. Houve um dia, até, depois de algumas leituras realizadas, em que, a meio da noite, qual um dos casos relatados em Creativity, de Mihaly Csikszentmihalyi, me levantei da cama, peguei numa folha de papel e escrevi a introdução da tese - o primeiro esboço. Ocorreu-me enquanto esperava o sono que não chegava.
Apesar desse episódio, não sou uma pessoa criativa. Quer dizer, talvez até possa ser, mas somente numa área que domine bem - e que agora não me ocorre qual. O que Mihaly «blá-blá-blá» (não sei pronunciar o nome dele. Quando o meu co-orientador, que é também meu amigo, o citou durante a defesa de tese, demorei alguns segundos a perceber que ele estava a pronunciar o impronunciável nome do senhor de origem húngara), afirma, é que, primeiro, a criatividade não é uma cena de geração espontânea, nem vem codificada no genoma. Na verdade, além de, como afirma, não acontecer na cabeça das pessoas, mas na interacção entre elas, deriva da conjugação de três elementos que compõem um sistema, sendo que um deles é um conhecimento profundo da área de actuação/especialização do indivíduo em questão. Dificilmente eu poderia ser criativa em Matemática, dado que aos 15 (!!!) me foi deixada de leccionar e, como qualquer linguagem, se não praticamos, lá se vai gramática e vocabulário pelo ralo da memória abaixo. Não tenho um conhecimento da área. Sei o básico. Isso não me prepara para ser criativa.
Estou a extrapolar, claro, mas acho que vocês conseguem o ponto, ou numa tradução literal «you get the point».
Na minha área de actuação já tive os meus momentos, não brilhantes, mas bons. Enquanto trabalhei como jornalista, fui sugerindo alguns artigos e temas e tentei, sempre que possível esgalhar bons leads e boas reportagens, na medida do possível, considerando as linhas editoriais. Não era, nem nunca fui um Hemingway do jornalismo, mas acho que não estou a ser presunçosa se disser que desempenhava bem as minhas funções.
Ainda assim, não nego a minha vertente de proletária da informação. [Ah, sim, não sei se já cá teria sido referido algures, mas eu tenho formação jornalística. Não sou jornalista, porque não tenho sentimento de classe, mas tenho uma licenciatura nisso - vale o que vale, já se sabe - e trabalhei em jornais, ainda que por breves períodos de tempo.] Recordo bem o dia em que percebi que já era uma proletária da informação enformada: foi num sábado, algures no primeiro trimestre de 2008 - se estivesse em casa dos meus pais, conseguia já, com precisão, indicar o dia. Deviam ser umas 15, 16 horas. Tinha ido a uma conferência de imprensa da EDP lá do sítio - já se varreu a sigla da mente - e abordei a questão do aumento do preço da electricidade. Obtive as respostas, vim para o jornal e telefonei ao já falecido senhor do Conselho dos Consumidores - falecido de forma obscura, entretanto, suicídio na China, no continente, dizem eles - que criticou abertamente a decisão.
Peguei nas notas, transcrevi para o Mac - hoje já não conseguia escrever com aquele teclado - e em 30 minutos, mais coisa menos coisa, tinha meia página feita [meia página de jornal, entenda-se. Deviam ser uns 4000 mil sem espaços]. Reclinei-me na cadeira e fiquei a olhar para o monitor. E atingiu-me. Eu estava a produzir notícias, como quem trabalha numa linha de montagem. Eu era uma proletária da informação. Não havia ali grande reflexão, nada. Eu ia, recolhia informações, citações, vinha, transcrevia notas, criava um conjunto de frases numa estrutura mecânica e estava feito. Eu era uma operária. Só que não lidava com pedaços palpáveis de madeira ou metal. Eu lidava com palavras, dados, informações, que me eram dadas e as quais usava para montar uma coisa. Não vejo diferença entre isso e um operário de uma fábrica.
Foi nesse dia que comecei a ponderar se realmente era aquilo que queria fazer da vida - trabalhava num diário, acrescente-se. Mas claro que o Karma, que é nosso amiguinho, resolveu a situação: criou uma crise e, qual dominó, partindo dos EUA, foi derrubando todas as pecinhas que tinha à frente e eu deixei de ter me preocupar com isso de vir a ser jornalista até ao fim dos meus dias. [Será necessário assinalar o sarcasmo?]
E pronto, isto tudo a propósito da criatividade. Não me alongo mais, porque vou agora ver o que o Mihaly dizia sobre as três componentes e ler alguns dos casos abordados no livro, que incluem «Nobéis» de diferentes áreas, Física, Literatura, e cenas assim, ou então só pessoal muito bem sucedido. Pode parecer que não, mas sempre serve para animar a malta.